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quinta-feira, 10 de março de 2011

Cronicas

O AMOR E A GRAMÁTICA
Na história do Mario Prata [transcrita abaixo], o cara se casou com a mais velha; na da Lenise [transcrita após a crônica do Mário Prata], com a mais nova...

Esses causos (sem aspas depois da observação do Axel de Ferran de que a palavra está no Aurélio) me fizeram lembrar de um conto de Monteiro Lobato, chamado "O Colocador de Pronomes". Vou resumir o conto nas minhas palavras, porque infelizmente um livro dos contos "adultos" de Lobato é um dos poucos livros que realmente gostaria de ter e não tenho. [E, modestamente, eu acho que consigo entrar no espírito lobatiano e escrever na mesma veia...]

Aldrovando Cantagalo, diz a história, nasceu e morreu por um erro de pronome. Era obcecado com esse particular da gramática portuguesa.

A razão não era difícil de encontrar.

Seu pai não havia tido lá grande intimidade com os detalhes da gramática de nossa língua. Naqueles tempos sisudos, apaixonou-se, má sorte, pela filha mais nova do Coronel local -- ela, pessoa jovem, graciosa, um amor de criatura; ele, o Coronel, pessoa brava e temida, a principal causa do fato de que sua filha mais velha provavelmente iria morrer solteirona (pois, além de bravo o pai, ela tinha outras características não muito desejáveis: era um pouco velhusca, meio rechonchuda, tinha um que de vesga e mancava da perna direita).

O pai de Aldrovando e sua bela viram-se no footing do jardim, encontraram-se vez ou outra furtivamente, trocaram-se bilhetes, amaram-se daquela forma que era virtual mesmo que o termo ainda não fosse consagrado nesse sentido -- pois o amor virtual era o único que era permitido antes do casamento.

Um dia um dos bilhetes caiu nas mãos do Coronel. O bilhete, dirigido pelo pai de Aldrovando à sua amada, dizia: "Fulana [o nome da dita]: Amo-lhe".

De posse do bilhete o Coronel mandou incontinenti chamar o ousado namorador, que diante da confrontação com o Coronel tremeu nas pernas. Mas convocação de Coronel nao se recusa -- especialmente quando o Coronel é o pai da amada.

Lá chegando, o pai de Aldrovando foi recebido pela criada que o colocou no escritório. Um pouco depois entrou no escritório o temido Coronel, que foi direto ao assunto. Mostrou o bilhete ao pobre rapaz e lhe perguntou se era ele o autor.

-- "Sim, Coronel, fui eu que o escrevi", respondeu.

-- "E é verdade o que aqui está aqui escrito?", indagou o velho.

-- "Sim, sim, claro que sim".

-- "E o bilhete foi dirigido à minha filha mais nova?"

-- "Sim, sim, senhor".

-- "Então, está bom. Vai casar".

O interlocutor do Coronel caiu das nuvens. Haviam-lhe dito que o Coronel era pessoal temível e que ele podia nem sair vivo da casa. Casar? Pois ele não queria outra coisa!

-- "Ora, Coronel, com prazer. Em verdade eu tinha esperança de que um dia pudesse me casar com ela, mas..."

-- "Tudo bom. Vamos chamar a noiva", interrompeu o Coronel.

E, dirigindo-se à criada, mandou que esta trouxesse ao escritório sua filha mais velha.

-- "Perdão, Coronel. Acho que houve um engano. Não é a mais velha, é a mais nova..."

-- "Como? Você não admitiu que escreveu o bilhete à minha filha mais nova? E o bilhete não diz 'amo-lhe'? Ora, se você, escrevendo à mais nova, disse-lhe 'amo-lhe', só pode amar a mais velha -- a menos que tenha sido minha esposa que o senhor tinha em mente?"

-- "Não, não, Coronel. O senhor está certo. Eu me caso com sua filha mais velha".

E casou-se. E do casamento nasceu Aldrovando Cantagalo. Nasceu por um erro de pronome. Por isso dedicou sua vida ao estudo da língua portuguesa, para que o que aconteceu ao pai não lhe acontecesse, a ele próprio, um dia.

Como veio a morrer por outro erro de pronome, conto outro dia... Já é causo demais prum dia só.


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O Estado de São Paulo
Quarta-feira, 20 de setembro de 2000

Amor só de Letras

Mário Prata

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